domingo, 16 de março de 2008

Por serras e vales lá vamos nós.

Em cada caminhada descobre-se a beleza e as cores da natureza. Em cada passo firme e decidido há um sentimento de conquista. Por serras e vales vamos dar a conhecer histórias de um país, de um povo e de uma terra agreste mas envolta numa paz duradoura. Vai ser assim... por serras e vales.
Bora lá...

16 comentários:

Necho disse...

Sábado, 16-03-2008
Espectáculo... paisagens maravilhosas, agrestes e deixadas na memória de quem por lá passou. Estava a ver que não almoçavamos por causa da chave. E os cães... que têm medo do Necho. Lá voltamos em fileira. Chegámos vivos, cansados mas de pé... como as árvores. Porra que me doem as pernas...

Necho disse...

No dia 13, na quinta, lá foram os palhaços reconhecer o terreno, sem água e sem comida... enfim há gente p'ra tudo.

L.C. disse...

Depois da primeira jornada bem sucedida de Regoufe a Drave, seguiu-se a segunda, de Regoufe a Covêlo de Paivô.
O dia tinha começado muito cedo, para um Domingo enublado e frio de Março. Dos mais de 20 fanfarrões inscritos apenas compareceram 11 decididos e determinados!... Mais ou menos apetrechados, munidos de muito entusiasmo e com o "roadbook" elaborado com as anotações que no dia anterior tinha feito numa volta de reconhecimento, por conta própria, pusemo-nos ao caminho, ainda com caras de muito sono.
A primeira concentração necessária ocorreu numa pastelaria já conhecida, no início da estrada para S. Pedro do Sul, para café e reorganização do grupo.
Chegados a S. Pedro do Sul, nova pausa de reorganização e para a primeira surpresa, pela desistência inesperada de dois dos participantes. Ainda tentámos demovê-los, mas em vão, um pouco compreensivelmente, face às condicionantes apresentadas. Ficará para uma próxima...
Iniciámos a etapa seguinte, rumando a Santa Cruz da Trapa. A subida para o S. Macário por Stª. Cruz da Trapa faz-se por uma estrada de montanha, estreita e em mau estado de conservação, mas com uma paisagem agreste e sempre deslumbrante que compensa os buracos da estrada.
As nuvens cada vez mais escuras e carregadas começaram a despejar a chuva que até aí só tinham ameaçado.
Ora chovia ora parava, mas sempre aquelas nuvens negras e ameaçadoras sobre nós a agoirar o pior.
Já depois do Portal do Inferno, como o tempo não parecia querer mudar, parei e inquiri o grupo sobre a continuação da aventura, ao que responderam quase em uníssono e, surpreendentemente, ainda mais entusiasmados, que era para continuar, com certeza! Fiquei contente e seguimos, agora convencido como tinha ficado de que não havia dúvidas sobre a determinação de todos e da coesão do grupo resistente. Éramos nove porque a Sandra o Gonçalo e a filha, ( a Carolina, um botãozinho de rosa lindíssima e simpatiquíssima) juntaram-se a nós mais tarde, no final da 1ª parte do percurso, com o carro e mantimentos, porque a Carolina ainda é muito pequenina e não teria condições de fazer aquele percurso, nem ao colo ou às cavalitas.
Dirigimo-nos até ao final do percurso pedestre, para deixarmos um dos carros com os mantimentos, regressando nos outros, a Regoufe e pusemos as "botas" ao caminho.
O Nelson, como sempre, foi um companheiro divertidíssimo e incansável, sempre com piadas, anedotas e apartes que fazem rir toda a gente e criam muito boa disposição. Chegado a Regoufe foi, de novo, um festival com ele, mas desta feita, por causa da fobia incontrolável que ele tem aos cães. Foi uma risada.
- "Ó Luís, caraças, lá vem um! Diz-me lá como é que eu tenho que fazer… Depressa!!!"...
Eu também não me sinto muito à-vontade com o gado bovino, principalmente por desconhecimento do seu comportamento e algum desconforto com o tamanho dos bichos, mas hoje já consegui estar mais perto deles: já lhes toquei e, de facto, são uns gigantes muito mansos e simpáticos.
De manhã e como tinha chovido, as lajes do caminho estavam molhadas e muito escorregadias, o que motivou alguns "bate-cús" para quase toda a gente, mas sem consequências.
O tempo continuava desencorajador, embora não chovesse, mas a determinação do grupo era muito forte.
Do caminho ancestral, pedestre e de carros-de-bois, que bordeja a encosta acompanhando o vale, primeiro da ribeira de Regoufe e depois do Rio Paivô, a paisagem que se avista é avassaladoramente fantástica! Todos enchemos a alma, daquela montanha e daquela imensidão telúrica, onde até o silêncio é inspirador.
Muita pedraria, com penedos de dimensões verdadeiramente imponentes, às vezes em equilíbrios prodigiosos, mas também muitos e belos exemplares da floresta autóctone de sobreiros centenários. O mato, mais rasteiro parece rivalizar entre si em cores e exuberância de forma. E nos ares esvoaçavam as aves; as de menor porte, irrequietas, tanto nos seus trinados harmoniosos, como nos seus movimentos e voos faiscantes e as de rapina, de maior porte, pairando mansa mas perscrutadoramente lá bem no alto, descrevendo grandes círculos em voos planados, ora subindo ora descendo, ao sabor das correntes de ar.
Cá em baixo os lagartos e as lagartixas, por causa da chuva e do frio da manhã, preferiram dormir até mais tarde e só foram aparecendo de tarde, na nossa etapa de regresso e apenas quando o Sol surgia por momentos. Ao longe e agilmemte empoleirados nos penedos, de forma que às vezes parecem desafiar as mais elementares leis do equilíbrio, pastava um ou outro rebanho de cabras e cabritos, sempre esquivos, atrevidos e curiosos. Animal simpático e divertido, na minha apreciação.
Finalmente, ao fim dos primeiros 4,5 km do percurso avistámos Covêlo de Paivô, uma aldeia pequena mas muito simpática. E lá estava já a Sandra e a família à nossa espera! Para quem nunca tinha posto os pés naquele "fim-do-mundo" e mesmo com o auxílio do "roadbook", foi um feito, conseguir dar como caminho!
Mas o melhor ainda estava para vir… Quando nos preparávamos para tirar os mantimentos que tínhamos na mala do carro do Luís, percebeu-se, com alguma estupefacção e apreensão que parecia haver algum problema com a chave do carro… Eles não tinham a chave do carro! Ninguém sabia da chave do carro!!! Tê-la-iam perdido no caminho? Teria ficado trancada dentro da mala do carro? Teria caído no meu jeep, aquando do regresso ao início do percurso? Começou a inquietação. O que fazer? Como fazer? O Nelson a vociferar que depois de tanto caminhar, nem sequer poderia cheirar o leitão que estava fechado na mala do carro!!! Tentámos por todos os meios razoáveis abrir o carro, com arames e tudo, mas em vão. Por essa altura tornou-se óbvio que alguém teria que ir, num instante a Regoufe ver se a chave estava no meu jeep. Saíram o Luís e o Gonçalo e a espera parecia interminável. A Teresa agonizava, uns e outros conjecturavam e o Nelson, fazia desesperadas tentativas de contacto telefónico, até que o Luís atendeu e lhe disse que não tinham encontrado a chave!
A notícia caiu que nem uma bomba e as reacções variaram entre o cepticismo e o desânimo cada vez mais difícil de disfarçar. A Sandra fazia render a sua posição, sublinhando quão providencial tinha sido a sua decisão de vir ter connosco, pois sempre tinha trazido algo que comer. A Natália não parava de assediar a Márcia para que a pobre partilhasse com todos a sanduíche e a barra energética que sobravam na sua bolsa. O Nelson já há muito tinha passado a fase do desespero e já fazia piadas com a situação e eu já me conformava com mais um dia de caminhada sem almoçar…
Mas eis que se ouve o barulho de um carro a chegar e ainda a ASTRA do Gonçalo não tinha acabado de fazer a última curva, já todos tínhamos notado o sorriso gaiato do Luís, não se contendo mais em manter a farsa! Afinal, ia haver almoço...
Rejubilantes e aliviados, cada um pelas mais diferentes razões, todos corremos para os carros e foi num ápice enquanto as bagageiras foram esvaziadas dos seus conteúdos tão sofridamente desejados.
O "pic-nic" de almoço foi, outra vez farto e, desta vez, ainda mais variado. Até leitão havia! Queijos, fumeiros vários, febras com molho picante, frango de churrasco, rolo de carne assada, omeletas, torresmos, empadas, rissóis, "croquettes", azeitonas, pão de mistura vário, doces, bolos, fruta, água, vinho, sumos e eu sei lá mais o quê...
No final, bem dispostos e saciados, passeámo-nos pelos arruamentos da simpática e acolhedora aldeia, embora os cães continuassem a despoletar facilmente no Nelson um comportamento fóbico, que muito nos divertia.
De regresso ao local de partida para a 2ª etapa, a Sandra encheu-se de coragem e decidiu acompanhar-nos pela montanha acima. O Gonçalo partiu de carro com a Carolina e o Luís deixou de novo o carro, para recolher no final da aventura.
O Sol fez-nos mais companhia no regresso a Regoufe. As lajes do caminho agora estavam secas e, por isso, não tão perigosas como de manhã, mas as dificuldades do caminho cedo se começaram a fazer sentir. O andamento diminuiu notoriamente, na proporção que aumentavam as queixas. Os músculos retesavam-se sacrificadamente a cada desnível maior para vencer e a respiração ofegante pouca energia deixava para a conversa ou mesmo para as queixas. Mesmo a beleza omnipresente da paisagem foi perdendo a atenção da maioria, mais concentrada em gerir o esforço exigido.
Parámos algumas vezes para recuperar o fôlego e reorganizar o grupo e, a meio da tarde, o final do percurso fez-se alegremente adivinhar.
Em Regoufe de novo, os cães e o Nelson voltaram a fazer as delícias de toda a gente que, embora cansados, exibiam agora aquele ar triunfante de missão cumprida.

E venha a próxima!...

L.C. disse...

Agora faltam a fotografias, mas não se impacientem, ó visitantes, que a seu tempo elas aparecerão...

Necho disse...

Já se está a pensar na próxima caminhada. Vamos ver onde vai ser. Os resistentes cá estão para o que der e vier.

Unknown disse...

Infelizmente não pude estar presente desta vez, mas adorei o relato sobre a aventura, a paisagem e as peripécias sucedidas, portanto, só falta mesmo agora, ver as fotografias! Por favor, que os artistas revelem suas obras! Um beijo. Rô.

krónica disse...

pois, eu fui um dos cromos k não apareceu!
aliás, kero aproveitar para pedir desculpas por me ter baldado!
achei extraordinária a descrição feita pelo luís correia! fantástico, luís, não te conhecia esses dotes!
verdadeiramente hilariante devia ter sido a "fuga" constante do necho aos cães! pagava para ver!
eu cá tenho mais medufe do gado grande...para além do tamanho, akeles cornos metem-me medo!
se me for perdoada a minha falha gostaria k me dissessem quando houver próxima aventura.
um bjn

L.C. disse...

A PROPÓSITO DA ANTERIOR CAMINHADA A DRAVE.

A Serra de S. Macário, no Concelho de S. Pedro do Sul é delimitada a Noroeste pelos vales do Paiva e do Douro e confina com a Serra da Freita, em direcção a Arouca, Vale de Cambra e o Mar. Juntamente com as serras da Aráda, da Freita e do Arestal, faz parte do designado maciço da Gralheira, de cujo ponto mais alto (1053 m) - o Alto de S. Macário – a montanha descai, à excepção da vertente Poente, em vales abruptos, quase sempre profundos e por vezes sombrios. Dali se avista, em dias claros e com boa visibilidade, toda a região que se estende desde a Guarda e vertente poente da Serra da Estrela, até à região do Grande Porto.
Na vastidão desta região montanhosa e agreste, existe um esquecido pedaço de terra onde velhas aldeias típicas enquadradas por frondosas matas autóctones se debatem por travar a lenta, mas inexorável, marcha da desertificação.
A par de belos exemplares da Raça Arouquesa e do Cabrito de Lafões, destaca-se ainda a deliciosa doçaria conventual, de que o imponente Mosteiro de Arouca, legado à Rainha Santa Mafalda, filha de D. Sancho I e mais tarde adaptado à Ordem de Cister é um dos fiéis depositários.

São Macário, (outrora também conhecido por São Magaio), foi castro pré-histórico, arraial, acampamento romano e lugar de peregrinação ascética procurado, desde tempos imemoriais, por romeiros vindos desde o litoral atlântico até à fronteira leonesa.
Nesta serra deverá ter existido o santuário de um deus indígena – Maggaio – divindade adorado pelos povos celtas, cujo nome, talvez de origem bretã - “mager,” - significava aquele que nutre; aquele que cria. Entretanto, com a cristianização da península, os cultos pagãos foram aculturados pelos cultos cristãos, aquando da conversão destes povos e o culto de Maggaio terá sido substituído pelo culto a um santo cujo nome se aproxima foneticamente - Macário.
A este santo eremita existem algumas curiosas lendas associadas, de que daremos conta em próximos comentários.

É nesta Serra de São Macário, ou da Aráda – mais ao centro – que fica o Monte do Fuste, cujos vales escondem a “Terra Heróica de Penafiel”, com referência encontrada em documentos da Alta Idade Média e de que hoje, aldeias com a da Pena são fiéis representantes dessa ancestralidade.
No planalto para lá da aldeia da Pena, entramos na zona em que a Serra toma o nome de Aráda, com o seu extenso tapete dourado de urze e carqueja, que na Primavera, se transforma num maravilhoso jardim natural. Deste planalto e para poente, lá no fundo do vale, surge-nos, inacreditavelmente, a pequenina e abandonada aldeia de Drave, pertencente actualmente à Freguesia de Covêlo de Paivó, Concelho de Arouca, Distrito de Aveiro, Diocese de Viseu e terra-mãe de Francisco Martins, antepassado comum de todos os Martins da Beira Alta e do Baixo Douro, que terá chegado a estas paragens há, pelo menos 250 anos, para fugir da Incorporação Militar e da guerra, tendo-se dedicado, então, à pastorícia.
A freguesia de Covêlo de Paivó é constituída pelas aldeias de Drave, (e muito perto, o lugarejo também abandonado, de Gourim, cujo acesso parte do estradão de terra batida, que dá acesso à aldeia da Drave) Regoufe e Covêlo de Paivó e fica situada no centro do maciço montanhoso que se encrava entre as bacias hidrográficas do Douro e do Vouga. Esta formação montanhosa é delimitada pelos rios Arda, Paiva, Sul e Vouga e era em tempos também conhecida pelo nome de Monte Fuste. Todo este território fazia parte da doação de D. Ansure e sua mulher Ejeuva, senhores do território da Anégia, ao abade Hermenigildo, feita a 7 de Setembro da era 989 (A.D. 951), para que nele fosse construído o Mosteiro de S. Pedro, S. Paulo, S. Cosme e S. Damião.
Por aqui encontramos aldeias plenas de rusticidade, carregadas de tradição e de história, que se perdem no meio de paisagens deslumbrantes da montanha, constituindo um encanto para a vista e um bálsamo para o espírito. É destas aldeias que para já queremos fazer os nossos próximos destinos de caminhantes, como já foram o caso de Drave, Regoufe e Covêlo de Paivô e dos quais deixaremos aqui os nossos testemunhos.

ED disse...

Sou um dos dois desistentes que após tomar conhecimento do respectivo itinerário por alturas e profundezas orográficas me fizeram lembrar a minha autêntica fobia que é a condução automóvel por estradas estreitas e sinuosas vizinhas de vertentes abruptas que se precipitam sobre vales profundos e que só me acode à ideia que me desfaço em dois tempos lá em baixo.É de autêntica angústia o que sinto nessas alturas.Isso aliado ao cansaço que se segue a 24 h de urgência justificou a minha atitude.As minhas desculpas para tão agradável companhia.Os resultados finais para mim são só negativos(e comigo incluo a minha cara metade que arrastei na covarde desistência)...Belas paisagens perdidas ...um magnífico almoço em perspectiva...Só prejuízos.Quero expressar ainda nestas linhas os meus parabéns ao LC pelos seus dotes literários.Autêntico Eça em " A cidade e as serras"...
Deixo aqui a minha candidatura para uma próxima caminhada a altitude zero.

L.C. disse...

a própósito da efeméride:

"A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada"

Sophia de Mello Breyner Andresen

Necho disse...

Para que conste neste dia

" Libertei-me das amarras do meu ser
Onde o tempo é da terra uma raiz
E entrei nessa aventura sem saber
Mas fiquei até ao fim porque assim quis

Percorri de lés-a-lés esse caminho
Caminhei por entre a gente e sem querer
Lentamente fui ficando e de mansinho
Descobri qual a razão do meu viver

Vou voar
Vou nas asas do desejo que é o meu
Vou andar por entre as nuvens do meu céu
Neste sonho onde o mundo é mesmo assim

Vou gritar
Com palavras de magia e nada mais
Vou falar de coisas simples tão banais
Vou seguir o meu caminho até ao fim. "

Nelson Martins

andorinha sinhá disse...

sim...sim, vale a pena conhecer pessoas com tão grandes convicções e gostos bonitos

L.C. disse...

“O CAMINHO ONDE O MORTO MATOU O VIVO”

A Serra de S. Macário, com os seus cabeços majestosos e escarpas afiadas, foi de novo o meu destino, desta vez com o objectivo de descobrir e identificar um caminho ancestral, de que tinha apenas referências dispersas e pouco detalhadas. Do que consegui apurar, seria um percurso sinuoso, íngreme, exigente e estaria em precárias condições de conservação, por se encontrar há muito desactivado. Todas elas se vieram a confirmar, mas estes foram também os condimentos suficientes para me fazer decidir, ainda que um tanto imprudentemente.
Quinta-feira, dia 20 de Março de 2008. Três dias antes da Páscoa. Pelo aspecto do céu, totalmente limpo e ainda pontilhado de muitas estrelas, o dia adivinhava-se solarengo.
A aurora fenecia num espectáculo incrivelmente belo e grandioso que me envolvia, extasiado, na imensidão deserta e fria da serra. Assistir ao nascer do dia aqui em cima!...
O Nascente iluminava-se com uma claridade ténue de luz fria e extremamente límpida, que se espreguiçava sobre a linha do horizonte, num espectáculo que ia ganhando grandiosidade magnificente. Lentamente, os contornos das serras em redor perdiam os cambiantes cinzentos e ganhavam tonalidades violetas e azuis que pouco depois evoluíam para laranjas e vermelhos-fogo, cada vez mais luminosas e nítidas.
Na sua alvura queda de algodão e ainda sonolentas no regaço dos vales, as névoas matinais, começavam sorrateiramente a escoar-se pelas frestas apertadas, num silêncio límpido e purificador. Timidamente, o raiar do dia penetrava a escuridão que ainda resistia preguiçosamente, nos ermos mais escondidos.
Pouco depois já no cume e com o Sol triunfante acima do horizonte, a serra, cristalina, começava a encher-se de sons, de cores e de vida. Nas cristas pedregosas e despidas, o vento cortante e gelado, soprava fortíssimo, dificultando a captação de algumas imagens que quis fazer.
A aldeia da Pena vislumbrava-se aninhada no fundo do vale apertado e ainda parcialmente sombrio, para onde a estrada íngreme serpenteia, através um frondoso sobreiral, com outras espécies vegetais à mistura e tão características destas paragens agrestes.
Muito pitoresca e auto-suficiente, a aldeia entreolha-se no pequeno emaranhado de ruelas, com as suas características casas de xisto e telhados de ardósia. Hoje, pouco mais é que um postal ilustrado, plena de rusticidade e encantadoramente emoldurada por toda aquela imponente e caprichosa paisagem natural, que nos deslumbra e assombra a cada passo e onde resistem ainda alguns -poucos - habitantes, numa luta diária desigual, contra a escassez de recursos e as condições difíceis da orografia, do clima e do isolamento. Nos meses mais rigorosos de Inverno, a luz do dia demora-se escassas horas aqui em baixo e é frequente os “Penedos de Góis” e o cabeço do Trevim, em redor, ficarem cobertos de neve.
Devido à sua localização abrigada, a aldeia beneficia de um microclima que se reflecte principalmente na flora. A vegetação é abundante e variada, com destaque para os castanheiros centenários que foram, em tempos, o sustento da economia local. Em conjunto com o sobreiral, é o que resta da mata autóctone, património histórico que interessa preservar.
Depois de tentar obter mais algumas informações sobre o percurso, na “Adega Típica”, logo à entrada da aldeia e onde o proprietário me recebeu hospitaleiramente, fiz-me ao caminho, pelas ruas estreitas e sombrias que dão acesso aos lameiros e campos de cultivo, em direcção aos cabeços mais próximos, que se avistam.
No limite da aldeia e antes de chegar às terras cultivadas, atravessa-se a ribeira da Pena, a vau, que nos franqueia o caminho com uma pequena cascata, por onde escorre mansa e alegre. A água é límpida e o cenário é bucólico. Logo à frente há que escolher o carreiro, que uma tabuleta rústica, em lousa, indica como, “O Caminho Onde o Morto Matou o Vivo”.
Conta a lenda que, no tempo em que a aldeia da Pena não tinha cemitério nem estrada de acesso, os mortos eram transportados, a pé, numa urna ou padiola, até à aldeia de Covas do Rio. Numa destas fúnebres viagens, um dos transportadores terá escorregado e sido fatalmente atingido com o caixão, mas o mais certo, depois de ter conhecido o caminho, terá sido o desgraçado ter-se despenhado e morrido na queda. Foi assim que “o morto que matou o vivo” deu o nome e a lenda a este caminho, que me proponho hoje descobrir.
A parte inicial do percurso é um ameno e descontraído passeio, ladeando as terras de cultivo. Mas, só até se alcançar o cabeço mais próximo que se avistava da Pena. Este promontório, da Fraga do Picoto, a cerca de 900 metros de altitude, faz parte da fronteira natural que separa as duas aldeias e, aqui chegados, o carreiro parece esgueirar-se por uma passagem estreita da fraga.
O nosso olhar perde-se, com a respiração suspensa, na inacreditável e deslumbrante vista, que parece surgir do nada, dominando como um voo planado, a imensidão panorâmica, que se espraia até à Serra de Montemuro, limite longínquo no horizonte esbatido pela névoa.
Depois de nos recompormos desta visão imponente e avassaladora, tentamos de novo retomar o carreiro que até ali nos trouxe e, de súbito, inesperadamente, este parece ter desaparecido. Focamos melhor o olhar e, o que se nos depara é, no imediato, aterrador!
Encarrapitados em equilíbrio caprino, na aresta cumeeira daquele desfiladeiro, temos uma visão soberba e arrebatadora. O desfiladeiro abre-se numa fenda quase vertical, para um vale muito acanhado, magnificamente luxuriante, húmido e assustadoramente sombrio, de que não conseguimos vislumbrar o fundo. Impressiona a densa e sombria massa vegetal aos nossos pés, onde aos poucos, começamos a identificar os fetos frondosos, os arbustos e as árvores de grande porte, como os carvalhos, os castanheiros e os sobreiros, ou as esguias e altas, como o salgueiro.
Atravessando o vazio, com o olhar ainda assustado, ali mesmo ao nosso lado direito, a ribeira da Pena despenha-se por entre uma falha fatal da escarpa, num ousado mergulho para o abismo cavernoso. A cascata monumental ruge furiosa e precipita-se, em caudal ruidoso, por entre a penedia afiada que lhe tenta, em vão, suster o ímpeto.
Mas, afinal, o carreiro continua. Para baixo e a pique, descendo em estreito e sinuoso ziguezague talhado na parede da rocha! O trilho está muito deteriorado, com muito material solto e rolante, a exigir muita atenção e equilíbrio. Aqui e ali, restos caóticos de degraus esboçados na topografia do terreno, ou rusticamente construídos com minúsculas lajes, resistem precariamente, empoleirados em pedrinhas mais pequeninas, que lhes servem de cunha e os sustentam milagrosamente.
Iniciei, pois, a descida cautelosa, lenta e esforçadamente, escolhendo milimetricamente os locais onde ia pondo os pés. É medonha e extremamente exigente, tanto na prestação física, como no equilíbrio e no controlo das emoções que, quantas são as vezes, nos parecem atraiçoar, fazendo-nos vacilar na decisão de continuarmos.
A paisagem é deslumbrante. A tensão é enorme. Num minuto sentimo-nos aterrados de medo e no seguinte já exultamos, deslumbrados com a imponência temerosa do cenário e com a surpreendente forma como vamos vencendo os obstáculos, que pareciam intransponíveis.
Finalmente, o desnível da descida timorata deixa-nos fazer uma pausa retemperadora e oferece-nos o espectáculo surpreendente da pequena bacia de água incrivelmente cristalina, onde a ribeira da Pena termina o seu mergulho suicida e inicia o resto do percurso, sempre sinuoso e veloz.
Do fundo daquela garganta acanhada, olhamos para cima, extenuados e sentimo-nos minúsculos, perante a grandiosidade ameaçadora do cenário. A densidade vegetal, agora trespassada pelos raios do Sol matinal, adquire transparências e cores delirantes. Os troncos das árvores e as rochas estão cobertos com tapetes espessos e coloridos de líquenes viçosos. Há chilreios e trinados a ecoar estonteantemente, sobrepondo-se ao fragor da água, que agora, apenas ressoa nos ouvidos como um aprazível rumor inocente.
Depois de vencida esta difícil parte inicial parece termos saído do Inferno e entrado no Paraíso. Atravessamos a ribeira para a margem direita, através de uma pequena ponte tosca, que já não se lembra do tempo e continuamos o percurso através de um autêntico jardim botânico, com cerca de 2 km de extensão.
O carreiro continua agora, com desníveis menos acentuados, menos perigoso, mas a exigir sempre muita atenção e cautelas, porque continua sinuoso, estreito, escorregadio e muito deteriorado. Do nosso lado esquerdo, a ribeira da Pena, agora fogosa, caudalosa e brincalhona, sussurra baixinho, saltitando nos pequenos açudes e esgueirando-se agilmente, por entre os grandes penedos lustrosos, plantados ao longo do seu leito tortuoso.
O cenário continua paradisíaco, com o arvoredo denso, e diversificado. Nalgumas curvas do percurso, por vezes, conseguimos vislumbrar, ao fundo do vale, o nosso destino. Daí a mais, chega-se a Covas do Rio, atravessando de novo a ribeiro da Pena e continuando por um caminho de carros-de-bois, mas, um pouco antes, a exuberância paradisíaca da vegetação dará lugar, de novo, a uma paisagem agreste e inóspita, onde o mato rasteiro e a pedraria nua voltam a dominar.
Chegados a Covas do Monte, impõe-se uma visita descontraída pela aldeia, para desentorpecer as pernas e ganharmos ânimo para o regresso. Sim, porque o carro… ficou na aldeia da Pena!
No regresso o cenário é o mesmo, mudando apenas a incidência da luz do Sol que, indiferente ao nosso esforço e temores, vai fazendo o seu périplo, conferindo à paisagem, luz e cores sempre diferentes e deslumbrantes.
Depois de várias paragens para recuperar o fôlego e a frequência cardíaca alcanço, de novo, no cume do desfiladeiro, a Fraga do Picoto. Ofegante, exausto, suado e com as pernas a arder pesadamente do esforço, dirijo-me para a Pena saboreando já, numa exaltação contida, o indescritível prazer de ter vencido o desafio!

E agora, deixem-me perguntar-vos, à laia de conclusão:
- Haverá por aí, alguém que esteja disposto a fazer… o “caminho onde o morto matou o vivo”?...

. disse...

Fantásticas fotos, descrições literarias, um grupo unido...o que mais para aguçar o apetite de quem está a mais de 5000Km de distância de Portugal?

Infelizmente, não vou poder acompanhar-vos nos próximos capítulos, mas fica prometido que, quando regressar a PT, irão ter mais um "caminhante" e fotógrafo!

Abraço.

Pedro Albuquerque.

Necho disse...

E lá fomos nós mais uma vez…
Da Aldeia da Pena até Covas do Rio, por serras e vales onde tudo é mais verde, mais sombrio e mais sublime. A mansidão do chão agreste perde-se ao longo de um caminho de pedras frias e gastas e o rio é cúmplice desta caminhada e acompanha-nos neste percurso de simples caminhantes mas de bravos “guerreiros” devastando o mato, sulcando a terra húmida e galgando por entre enormes rochedos que nos negam a passagem. No silêncio de um momento, coisa rara na caminhada, ouve-se o chilrear dos pássaros e os latidos dos cães, lá longe (graças a Deus) e tudo à nossa volta se abre numa plenitude e numa combinação de cores, de sons e de formas.
Eu passei por ali…
Por serras e vales continuamos firmes e decididos, cansados mas não vencidos. Lá ao longe avista-se a aldeia e sente-se um tempo onde o tempo parou. Avista-se alguém que fala connosco. É gente da terra, com as rugas no rosto que nos lembra um chão por arar. É gente boa que fala como se o mundo terminasse ali…” para lá já não há nada”.
E o mundo parou ali… não fomos para lá. Regressámos porque para lá já não há lugares de paz e nostalgia, já não há gente de coragem e de sentimento.
Voltamos a percorrer o mesmo trajecto e o rio de mansinho veio saudar-nos, e o mato, as árvores, as pedras, num silêncio e numa quietude plena viram-nos partir, talvez com saudades, sei lá…
Por serras e vales… havemos de voltar.

Nelson Martins disse...

Olá Nelson Martins. Daqui fala Nelson Martins também. Entre páginas de internet constatei que percorremos um percurso parecido, daí a minha admiração. Também me chamo Nelson Martins, tirei curso de Enfermagem, e estudei música no conservatório de música d. dinis em odivelas. Actualmente sou enfermeiro no hospital pulido valente, dou aulas particulares de acordeão e concertina e concertos a solo e com o meu grupo- Grupo Musical LáMiRé. Também fui magister da Paulituna, a tuna da escola de Enferamgem. Gostava de trocar impressões. Pode me contactar através do mail nelsonagm@sapo.pt. Obrigado. Cumprimentos, Nelson Martins.